Um marco da participação feminina na política no Brasil ocorreu em maio de 1986, quando o país viu Iolanda Fleming, uma professora, filha de um seringueiro e de uma imigrante árabe, tomar posse aos 49 anos como a primeira mulher a assumir em definitivo o cargo de governadora, no Acre.
Iolanda foi agricultora e empregada doméstica antes da docência e da vida pública e ocupou o cargo após a saída do então titular, Nabor Júnior, para concorrer naquele ano ao Senado. Aos 12 anos, foi animadora dos comícios do PTB acriano, filiando-se ao partido à época associado ao varguismo.
Ela passou apenas 305 dias no cargo, dedicando-se a concluir investimentos feitos pelo seu antecessor e a olhar para obras de alcance social, incluindo a primeira delegacia especializada em atendimento à mulher do estado.
A maioria de seus projetos foram implementados em outras gestões, e seu futuro político estagnou após exercer o governo, não obtendo êxito para chegar a outros cargos eletivos. Até hoje, 13 estados brasileiros já foram comandados por mulheres no país em caráter substitutivo ou definitivo.
Nascida em Manoel Urbano (a 244 km de Rio Branco), foi alfabetizada pela mãe, já que a cidade onde morava não tinha escola, enquanto trabalhava com algumas atividades rurais já na infância. Para manter os estudos, seria necessário se mudar para Sena Madureira (a 137 km da capital), o que ocorreu anos depois.
Lá, foi matriculada no colégio de freiras Madre Santa Juliana para fazer o ensino fundamental. O então segundo grau, hoje o ensino médio, ela fez na capital acriana, onde realizou tarefas domésticas e trabalhou como caixa nas Lojas Pernambucanas para poder manter-se na cidade e continuar os estudos.
Foi nesse ínterim que teve o primeiro contato com a política e com o PTB, fundado por Getúlio Vargas em 1945 e com João Goulart como um quadro. A sigla escolhia crianças e adolescentes para cantar as músicas de campanha nos palanques acrianos locais, e Iolanda foi uma das animadores de comícios.
Quando acabou o segundo grau —que também autorizava a docência—, foi ao Rio de Janeiro para morar com uma tia e tentar ser aeromoça ou seguir carreira de modelo.
As duas opções de carreira foram frustradas após ser convencida de que, apesar da determinação, ambas as áreas tinham ingresso restrito a pessoas com menos privilégios, ou que não tinham contatos preestabelecidos nesses setores. Com isso, decidiu retornar ao Acre.
Voltando a Rio Branco, passou a trabalhar como professora do ensino primário e conheceu Geraldo Fleming, veterinário e capitão do Exército, em 1960 —o militar, nascido em Minas Gerais e com formação no Rio, foi enviado à cidade pelos esforços do governo em consolidar as fronteiras do território. Casaram-se em 1963.
Um ano depois, com Jango no Palácio do Planalto indicando Rui Lino (PTB) para administrar o Acre, foi nomeada professora da rede estadual. No mesmo ano, Geraldo Fleming se filia ao partido, e Iolanda é convidada para ser secretária do diretório acriano da agremiação.
O marido de Iolanda, que também fez carreira política inicialmente pelo PTB, foi secretário de Agricultura e de Justiça, além de deputado estadual e deputado federal, ocupando cargos públicos desde 1962. Morreu em 1991.
Iolanda passou a ocupar cargos eletivos mais tarde. Após a imposição do bipartidarismo na ditadura militar, tanto ela quanto seu marido migraram para o MDB em 1965. Foi eleita vereadora da capital acriana em 1972 e em 1976, mesmo ano em que foi alçada à presidência da Câmara Municipal da cidade.
Em uma entrevista à Folha em 2010, afirmou ter enfrentado preconceitos desde o início de sua carreira política. Lembrou, especialmente, de quando cursou direito, aos 37, enquanto entrava na vida pública. “Ouvi coisas do tipo: ‘Mulher que vai à faculdade é vagabunda'”.
Chegou à Assembleia do Acre em 1978, quando foi eleita deputada estadual, permanecendo até 1983, após ter se candidatado a vice-governadora pelo à época PMDB ao lado de Nabor Júnior, que já tinha sido congressista pelo estado. Ela foi escolhida para a chapa pela força política que tinha em Rio Branco.
Iolanda assumiu o cargo interinamente diversas vezes até a saída de Nabor em 1986 e lidou até com insubordinação de secretário. Em entrevista ao jornal local Ac24horas, ela contou que após o espancamento de um estudante por um policial militar, chamou o secretário de Segurança e ele se negou a ir, “porque governador para ele era só o Nabor”.
O chefe da pasta, então, trancou-se em seu gabinete, e a governadora o demitiu, determinando que o comandante da PM acriana tivesse 20 minutos para arrombar a porta da secretaria, para a posse de um novo titular. Com a ordem, o titular deixou o local.
Assumiu o cargo em definitivo em 14 de maio de 1986, sendo a primeira mulher a tomar posse como governadora efetiva de um estado do Brasil. A primeira alçada por meio do voto no país, por sua vez, foi Roseana Sarney (PMDB) em 1994, oito anos depois.
Iolanda buscou investir em obras de alcance social e iniciou projetos como a instalação da primeira delegacia especializada no atendimento à mulher no estado e a pavimentação de trechos de rodovias e da construção do Hospital Estadual do Acre, concluída no mandato de seu sucessor, Flaviano Melo —governo no qual ocupou a Secretaria de Transportes até 1988.
Depois disso, filiou-se ao PDS de Paulo Maluf e integrou a chapa à Prefeitura de Rio Branco como vice, com êxito, ficando no cargo até 1992. Voltou ao PMDB e tentou ser deputada federal em 1994, vereadora da capital acriana em 1996 e deputada estadual em 2002, sem sucesso em nenhuma das tentativas.
Em 2009, migrou para o PTB e pleiteou novamente uma vaga na Assembleia do estado, sendo mais uma vez derrotada. Em 2022, apoiou Jair Bolsonaro (PL) à reeleição ao Planalto —disse ter admiração por militares e pela administração do ex-presidente.
O Senado lhe concedeu em 2019 o Diploma Bertha Lutz, em homenagem à bióloga e uma das precursoras do movimento feminista no país, que visa reconhecer mulheres que contribuíram para a defesa da igualdade de gênero no Brasil. Hoje ela tem 88 anos e permanece vivendo no Acre.
Para Brenda Barreto, cientista política pelo Ipol (Instituto de Ciência Política) da UnB (Universidade de Brasília), a passagem de Iolanda no governo acriano teve um simbolismo de resistência em um ambiente quase totalmente masculino.
Segundo a cientista política, a ex-governadora e outras mulheres no poder passam o recado de que a política é um local público e democrático, e deve ser ocupado por outras perspectivas.
Questionada sobre a subrepresentação das mulheres nas chefias dos Executivos estaduais apesar do crescimento das candidaturas femininas, Barreto cita uma série de questões, como o financiamento de campanhas, questões culturais e institucionais, no processo decisório dos partidos.
Diz ainda ser necessário efetivar as regras existentes na legislação e aprovadas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para fortalecer candidaturas de mulheres.
“Também é importante haver fiscalização. Já temos 30 anos das cotas para candidaturas femininas, mas a cada ano há uma tentativa das siglas de burlar as regras. Havendo fiscalização, devemos fazer com que partidos sejam realmente punidos, não tenham anistia”, afirmou, em referência à série de perdões que as siglas aprovaram a si mesmas no Legislativo.