Numa denúncia demolidora para Jair Bolsonaro e boa parte dos seus aliados militares e civis unidos em torno de uma aventura golpista, um aspecto chama a atenção e permanece intrigante: o da omissão dos comandantes das Forças Armadas em relação aos acampamentos diante dos quarteis.
Não que o procurador-geral da República, Paulo Gonet, signatário da denúncia, fuja do assunto. Chega a mencionar os acampamentos valendo-se de um adjetivo para expressar indignação. Ao narrar a insistência da denominada “organização criminosa” em insistir na acusação de que a eleição de 2022 fora fraudada, escreve:
“Esta era a forma de manter a militância do presidente da República animada, pedindo intervenção militar, em famigerados acampamentos montados em frente a quartéis do Exército em várias capitais do país. O que se pedia –diga-se– nada mais era do que um golpe militar, que propiciasse que os resultados das urnas fossem elididos por meio de insubmissão às regras democráticas de transição de poder.”
Mas o procurador confirma a avaliação da Polícia Federal de que, entre os três comandantes das Forças Armadas, apenas um —o almirante Almir Garnier, da Marinha— participou da trama golpista.
Gonet reúne elementos —sobretudo depoimentos, do delator Mauro Cid, dos próprios comandantes e outros, e troca de mensagens— para afirmar que os comandantes do Exército, Freire Gomes, e da FAB, Baptista, Jr, não endossaram os planos de golpe da dita “organização criminosa”. A denúncia, porém, relativiza a evidente omissão dos chefes militares –os três– em relação aos acampamentos.
O PGR abriu um título na denúncia para tratar do tema (“Nota dos Comandantes das Forças Armadas em 11.11.2022”). Refere-se à declaração conjunta assinada por Freire Gomes, Baptista Jr e Garnier segundo a qual os acampamentos onde se clamava por um golpe expressavam “livre manifestação do pensamento”, “liberdade de reunião” e “liberdade de locomoção no território nacional” garantidas pela Constituição.
Com base na delação do tenente-coronel Mauro Cid, Gonet escreve que a declaração conjunta dos chefes militares “foi emitida por ordem do então presidente Jair Messias Bolsonaro, com o objetivo de manter seus apoiadores mobilizados”. A confirmação dessa tese, na interpretação do procurador, viria de uma mensagem de Cid para Freire Gomes em que o então ajudante de ordens diz os movimentos estavam “se sentindo seguros pra dar um passo à frente”.
Logo adiante, Gonet chega a usar a construção “aparente respaldo militar”. Ora, o endosso dos comandantes das Forças Armadas aos “famigerados” acampamentos —o adjetivo, não esquecer, é do procurador— é cristalino na nota conjunta.
Não precisa ser estudioso de leis ou de Forças Armadas para saber que ordem ilegal não se cumpre. Se partiu de Bolsonaro a ordem para estimular os acampamentos-incubadoras-de-golpe, aos comandantes discordantes caberia não cumpri-la e entregar seus cargos. Não o fizeram.
É ainda de se perguntar por que, em seu depoimento à PF em 2 de março de 2024, Freire Gomes não disse que assinou a nota e manteve os acampamentos por ordem de Bolsonaro. Indagado se a nota “foi utilizada como respaldo das Forças Armadas para manifestações de apoiadores que estavam acampados em frente às instalações militares”, o comandante do Exército respondeu que não.
“Que tal interpretação foi dada de forma equivocada”; “que o objetivo era demonstrar que as manifestações não deveriam ocorrer em frente às instalações militares, e sim no âmbito do Poder Legislativo”. Ocorre que não há nenhum trecho da nota que sustente o que diz Freire Gomes.
É natural que Gonet critique os acampamentos em frente aos quartéis. Hoje é opinião corrente entre criminalistas e ministros do STF que foram o laboratório da aventura golpista e deveriam ter sido desmantelados. Tanto o ministro-relator do caso no STF, Alexandre de Moraes, quanto alguns de seus pares na corte, notadamente Gilmar Mendes, criticaram duramente a manutenção daquelas estruturas com conivência dos comandantes.
Para Moraes, “foi um erro muito grande”. Ele lembrou que disse isso a autoridades do governo Bolsonaro, à Polícia Federal e à Procuradoria-Geral da República. “Não há direito à reunião, não existe liberdade de expressão em você acampar na frente de um quartel pedindo para as Forças Armadas derrubarem o regime democrático”, disse.
Gilmar definiu como “um entendimento um tanto quanto exótico” a ideia defendida pelos comandantes de que os acampamentos estavam assegurados pela liberdade de expressão prevista na Constituição e citou um caso em que a Corte Constitucional Alemã proibiu que manifestantes protestassem em frente a quartéis para impedir proliferação de mísseis.